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quarta-feira, 30 de setembro de 2015

Magnífica 70 - 1ª Temporada



Por Ted Rafael Araujo Nogueira. Nota 9,0. 

A série tergiversa sobre o período militar e a questão da censura no cinema brasileiro e estrangeiro focando na produção cinematográfica da boca do lixo, onde concatenou-se boa parte da produção alcunhada marginal e pornochanchatesca paulista.

O enredo envereda no situacionismo de um censor de cinema Vicente (Marcos Winter) que acaba por se interessar por uma atriz de filme no qual ele censurou, atriz Dora Dumar (Simone Spoladore) esta que lembrara sua cunhada com a qual teve um quase coito pré-arranjo nupcial com a irmã desta última (aqui numa homenagem clara ao conto "o Anjo" de Nelson Rodrigues) que acabara por atrair Vicente tempos atrás. A partir desta premissa inicial Vicente adentra no universo cinematográfico marginal mantendo uma vida dupla como censor cultural e diretor/roteirista cinematográfico.

Não procuro aqui uma descrição inútil dos mais variados pormenores da excelente criação de Cláudio Torres, Renato Fagundes, Leandro Assis, Luiz Noronha, baseado em um roteiro de Toni Marques, mas sim uma análise dos discursos nos quais a obra busca contemplar.

De interessante premissa a obra desenrola-se como uma ode àquela forma de se fazer cinema dos anos 70, onde a produção cinematográfica brasileira vivia tempos espúrios devida a questão da censura à liberdade de expressão onde o controle censorial delimitava espaços de atuação, nos quais sobraram, e sobreviveram, em grande parte a pornochanchada. Esta que além de suas críticas escondidas ao regime ainda sofria com a questão moral de seus filmes, e onde um investimento baixo neste cinema também não permitia grandes arroubos técnicos. Por muitas vezes um cinema de guerrilha social e sexual. Somando-se a toda esta gama de dificuldades (sem o apoio governamental de produção, a não ser a propagandística pró-governo aqui e ali) há o domínio do cinema estrangeiro que se vendia mais barato por buscar um domínio cultural cinematográfico no país. Além dos problemas com a precariedade de várias salas de cinemas mais preocupadas com filmes legendados e despreocupando-se com a sonoridade o que seria mais um ponto prejudicial ao cinema brasileiro.

Estes são somente alguns pontos nos quais o cinema marginal com a pornochanchada tinha de combater para sobreviver. A série busca trazer estes elementos de dentro pra fora. Focando na produção marginal e quais atores agiam neste universo. Como agiam e o quanto eram escusos e mantinham um alto nível esculhambacional para a concatenação de sobrevivência que aquele universo exigia.

A série açambarca bem a questão das dificuldades de produção cinematográfica e as figuras que participavam daquilo tudo com uma narrativa coesa (um pouco recordatória por vezes, com alguns flashbacks explicativos, coisa na qual muitas séries sempre o fazem) onde sempre busca-se não deixar pontas soltas em um excelente trabalho de roteiro. O trabalho de direção denota-se de maneira interessantemente paradoxal ao período que retrata por focar em uma iluminação noir, por vezes monocromática que ilumina os personagens e os elucida de forma a enaltecê-los e sacralizá-los em um contraponto com o universo no qual estavam acostumados. Um fina ironia e um deleite elogioso aquele período escroto do nosso cinema. Sem comentar da excelente reconstituição de época e ótima trilha sonora (porém repetitiva).

Como exagero narrativo temos a culpabilidade vilanesca do general Souto, o que me parece um desespero da série em catapultar um antagonista militar além da já óbvia censura e do próprio regime. Uma tentativa de vilanear forçosa e demasiadamente o regime militar de forma desnecessária, já que o mosaico encontrado no período histórico retratado e narrado na obra já faz isto eficientemente. Até como analogia a culpabilidade do regime neste ponto pareceu forçosa, algo que concatenado no departamento de censura foi muito melhor empregado. Um erro estratégico que não desvanece a grande qualidade do todo.

A dubiedade perpetua-se no encontro das mentiras esculhambatórias (como é dito por Dora em certo momento para Vicente). Vicente conta a história de sua vida por desespero e despreparo por não saber o que contar e à medida que sua obra vai ficando cada vez mais interessante, a publicização disto tudo transmutará em seu inferno. Aqui são perceptíveis os sintomas apontados de um país em regime de controle cultural. O profano de uma verdade clamando pra ser contada e por outro lado busca-se silenciá-la. O silêncio, como o contrário do que se pensa, não fala, grita. Esgoela-se pra aparecer. O filme dentro da série é este exemplo, além da metalinguística, um câncer a ser estraçalhado.

Elenco escolhido a dedo transpõe a tridimensionalidade de alguns de seus personagens como no trio principal e em seus personagens secundários nos trazendo uma excelente química entre os escolhidos onde a visualização dos mesmos não poderia ser melhor. Escolher Marcos Winter como o personagem central foi de extrema felicidade. Uma figura esguia que dever-se-ia preconizar uma vida dupla cheia de situações escusas e mentiras e ter de deambular por todo este universo tal qual uma lagarta num filete de navalha (como diria o Coronel Kurtz em Apocalypse Now). Adriano Garib brilha com seu astuto Manolo Matos que conhecedor do universo escroto da boca do lixo faz tudo ao seu alcance para a existência da produtora magnifica cinematográfica sob quaisquer condições de produção. Um cara prático e escroto. Por fim a destacar Simone Spoladore como Dora numa personagem (uma pela outra) forte cheia de meandros que convive dentro e fora de si e tenta manter o foco também na deambulação e controle de todos a sua volta com seu charme e seu corpo para enganar os imbecis nos quais se metem com ela. A ninfeta de Nelson Rodrigues quando crescer.

Atentando aqui para o caráter leve se compararmos o impacto e a estética das produções originais, pretende-se como corajosa ao homenagear este difamado período de nossa arte.


Uma obra de alta e escrota qualidade que propõe homenagear o cinema marginal brasileiro e mostrar o quão somos ricos e lutadores. Acabar com esta merda colonizadora de que não somos bons contadores de histórias e que as nossas estão aquém de tantas outras estrangeiras. Lamento dizer colonizados, Magnífica 70 não fica nem um pouco atrás de um Breaking Bad ou um True Detective (mesmo levando em consideração toda a diferenciação estética, imagética, política e econômica, o que na verdade, caminha à nossa benesse comparativa), deixemos de babação e partamos pra assistir a nossa produção com a noção de nossa força como realizadores frente a tantos materiais que são reciclados por sobre nossas carcaças culturais pútridas. Perpetue-se, série, sobreviva pornochanchada, e mande todos se foderem cinema marginal.