Muitos não
sabem, mas antes de se tornar comentarista político do “Jornal da Globo”, Arnaldo
Jabor construiu uma carreira como cineasta. Um dos fundadores do Cinema Novo,
lançou filmes que entraram para a história do cinema brasileiro, como “Toda nudez será castigada” (1973), “Eu sei que vou te amar” (1986) e o mais
importante deles, a sua estreia em longas-metragens, o documentário “A opinião pública” lançado 1967. O
objetivo deste documentário era lançar um olhar sobre a classe média brasileira.
A escolha do “objeto” a ser analisado representou uma novidade
interessantíssima na produção cinematográfica brasileira da época, pois os
grandes filmes nacionais lançados até então sempre retratavam minorias sociais,
como moradores de morros (“Rio, Zona
Norte” de 1955 e “Cinco Vezes Favela”
de 1965), retirantes (“A Grande Cidade” de 1966) ou o sofrimento
do nordestino (“Deus e o Diabo na Terra
do Sol” de 1964, “Vidas Secas” de
1963, “O Fuzis” de 1964). A idéia
central do documentário era fazer com que a classe média, principal público consumidor
dos cinemas, visse a si mesmo na própria tela e pudesse lançar um olhar crítico
para si mesmo. Para realizar seu objetivo, Jabor filmou por meses a vida de
moradores do bairro de Copacabana, na cidade do Rio de Janeiro.
Logo no início
do filme, enquanto a tela está toda preta, escutamos uma voz em off proferir: “O filme a que vão assistir foi rodado na cidade do Rio de Janeiro.
Tudo que verão na tela é absolutamente verdadeiro. A câmera captou os fatos no
momento em que aconteciam. Não há atores nesse filme. Veremos aqui as pessoas
reais, em suas vidas reais. Nossos amigos, vizinhos, contemporâneos, nós os
habitantes comuns de uma cidade da América latina. Nós, os homens da classe
média. A classe que os altos poderes do país costumam chamar de a opinião
pública”. Essa narração em off vai nos revelar dois aspectos do filme. O primeiro que eu gostaria
de destacar é o fato de o diretor revelar logo de cara que o filme se comunica
diretamente com a classe média. Não apenas se comunicando, mas criando uma
empatia com o espectador/objeto de análise. Reparem que nessa fala o narrado
sempre se refere “a nós”, se
colocando como mais um representante da classe média, desse modo, o diretor
pretende conferir a sua análise um status
de neutralidade ideológica, pois, ao se colocar dentro desta classe, toda e
qualquer crítica que será levantada no filme recairá também sobre os próprios
realizadores do filme, representantes da classe média que são. Dito isso, o
segundo aspecto que essa primeira fala vai nos revelar é o modo como a estrutura
do filme será montada e desenvolvida: a voz em off funciona como a voz da verdade (lembrem-se da fala inicial do
narrador: tudo que verão na tela é
absolutamente verdadeiro), todas as intervenções do narrador servirão para
explicar, informar e esclarecer o espectador sobre quem é e o que pensam as
pessoas da classe média; as imagens, nesse caso, servem apenas para legitimar
as intervenções do narrador. Nesse documentário a imagem fica em segundo plano,
o importante é que o espectador compreenda as idéias lançadas pela voz do
narrador, detentor da verdade. Desse
modo o filme cria em torno de si um caráter de análise sociológica. Não é de se
espantar, já que a idéia do filme surgiu do livro de um sociólogo, o norte-americano
C. Wright Mills, chamado “White Collar:
The American Middle Classes” (1951).
Depois da advertência
do narrador o filme de fato inicia. Vemos o letreiro do filme, o nome da equipe
do filme, algumas imagens em plano aberto da orla, depois imagens de edifícios residenciais
enquanto uma música é tocada ao fundo. A câmera adentra um dos edifícios e
enquanto somos guiados pelo diretor através dos corredores do edifício o
“narrador/detentor da verdade” diz: “Tudo
que verão aqui é típico. Fugimos do exótico e do excepcional e procuramos as
situações, os rostos, as vozes, os gestos habituais. Isto por que, refletidas
numa tela, as coisas que parecem comuns e eternas se revelam estranhas e
imperfeitas. Começamos com uma turma de jovens de Copacabana. Perguntamos sobre
o futuro”. Então somos apresentados ao primeiro grupo da classe média
analisada pelo filme: a juventude. A cena na tela um grupo de cinco rapazes
tentando fazer com que um deles, em especial, responda a esta “simples”
pergunta lançada pelo diretor/narrador. A cena prossegue por mais de dois
minutos e meio e nenhum dos rapazes consegue dar uma resposta sobre o que pensam
do futuro. E assim o documentário segue
durante várias sequencias, mostrando cenas cotidianas de jovens, na escola, na
praia, no bar, onde sempre a juventude é apresentada como um grupo de pessoas
superficiais, risonhas etc.
Seguindo com o
filme, logo depois de apresentar essas cenas, o narrador profere sua conclusão
acerca da juventude de classe média: “Geralmente
se liga juventude moderna com revolta. As manchetes falam em tóxicos, delinquência.
Não vimos isso no jovem comum da classe média. Na maioria, ele ignora que a
sociedade é um teatro de grandes conflitos e marcha através de um presente
risonho para um futuro conformado. Para eles, o futuro é apenas um lugar em que
vivem os adultos”. Nesse ponto já percebemos a construção da imagem que o
documentário pretende criar da juventude da classe média.
Jovens falam sobre o futuro
Desta vez outro
grupo de jovens aparece em um bar falando sobre o “futuro”. Todos eles falam
sem nenhuma preocupação sobre o futuro, apresentando argumentos como “Você leva
dessa vida o que aproveitou, não é dinheiro, nem nada, por que depois que a
gente vai para o buraco nada disso interessa” ou “Eu não me sinto responsável
em nada. O destino é que sabe. Dia vem, dia vai, o que vier está bem, o que for
será”, depoimentos que serviriam para denunciar a total despreocupação da
juventude da classe média. O próprio autor destaca um culpado nesta alienação
da juventude. Para o autor o grande culpado seria “a moderna indústria”, pois “A
indústria vende aos jovens todos os sonhos. Os principais produtos são o
sucesso e a felicidade. O universo desta moderna indústria é conformista e
totalmente isento de angústia. Qualquer traço de revolta é logo vulgarizado em
moda. O que surgiu como protesto social vira estilo de roupa ou corte de
cabelo, os novos uniformes da obediência”. A juventude é tratada por este
filme como alienada e incapaz de produzir qualquer revolução ou mudança social,
a juventude, assim, é somente um fruto da indústria cultural.
Outro elemento
da classe média analisado pelo documentário são as mulheres. Uma das primeiras cenas
em que vemos apenas mulheres é uma sequencia onde várias garotas estão em um
quarto discutindo seus relacionamentos amorosos e discutindo sobre o amor. A
cena corta para um diálogo onde duas jovens estão discutindo com uma mulher
mais velha sobre o que é amor. Nesta conversa a mulher mais “experiente”, como
ela própria faz questão de salientar, diz que o importante sobre o casamento é:
“não pense só no amor, pense num homem que lhe possa embalar o sono tranquilamente”.
O diretor quer demonstrar que o importante para a classe média seria a tão
sonhada estabilidade econômica, sentimento como amor seriam coisas menores,
pois o importante era a estabilidade financeira.
Mulher e jovem discutem sobre o amor
Outra cena
importante que mostra o papel da mulher da classe média na sociedade é uma
entrevista com uma dona de casa. Durante a entrevista ela descreve o seu
dia-a-dia. “Eu acho que a mulher nasceu para isso, para ser de um homem só e
cuidar da sua casa. Mas também passear um pouco não é? Por que ela não é
escrava. (...) Acho minha vida chata demais. É cuidar dos filhos, cuidar da
casa, uma praia de vez em quando, de manhã, com os filhos, com os quatro,
lavar, passar pro meu marido, comida, fazer comida, levantar de madrugada
quando ele chega das farras, botar comida para ele. Quer dizer, isso não é
vida, de maneira nenhuma” é dessa maneira que a dona de casa descreve a sua
rotina, uma rotina de trabalho e de subordinação. É dessa maneira que o
cineasta percebe a mulher da classe média, uma mulher presa ainda ao costume de
opressão e de subserviência ao marido.
Outro momento
importante do filme é numa fila de alistamento militar. O locutor apresenta a
cena da seguinte maneira: “O homem da
classe média sempre é propriedade de alguém. Hoje se alistam no exército,
breve, serão os homens dos escritórios, dos departamentos, dos arquivos. Terão
crenças, chefes e dignidade. Serão chamados nos jornais de a opinião pública e
ficarão orgulhosos de cumprir as funções da nacionalidade”. Depois da fala
em off os jovens presentes no
alistamento começam a responder o por que de estarem ali. Não há em nenhum dos
depoimentos alguma referencia sobre o golpe de militar, parece que muitos até
nem dão conta do fato ocorrido (vale lembrar que o filme foi feito em 1967, ou
seja, depois do golpe de 1964). O único argumento apresentado é que o
alistamento “seria mais um passo na formação do homem”. Logo em seguida
aparecem cenas dentro de uma repartição pública. Neste momento do filme há uma sequencia
interessante. Há o depoimento de um funcionário que diz não se importar com o
que produz por que não é da alçada dele saber, quem deve saber a importância do
que ele produz são os seus “superiores”, seus chefes. Depois de tal cena, é a
vez do chefe fazer seu discurso e ressaltar o que o seu subordinado tinha
acabado de afirmar. Impossível não se lembrar das teorias da mais-valia e da
alienação do trabalho de Karl Marx.
O filme segue dando vários exemplos da
alienação da classe média brasileira, seu total desconhecimento do momento pelo
qual o país estava passando. Uma dessas cenas é uma que ocorre no meio da rua
onde as pessoas foram convidadas para darem sua opinião sobre qual seria a
solução para o problema do país. As respostas que vemos surgir na tela são
várias, desde a defesa da Amazônia, passando pelos problemas da fome, inflação
até o desenvolvimento da agricultura etc. Para logo em seguida o narrador
desferir seu último olhar acerca dessa classe: “Disse o sociólogo norte-americano Wright Mills: a história da classe
média é uma história sem fatos. Seus interesses comuns nunca levam a unidade.
Seu futuro nunca é escolhido por ela”.
Como falei no inicio
desse texto, Jabor foi um dos principais representantes do Cinema Novo, movimento cinematográfico que tinha como principal objetivo
produzir um novo cinema brasileiro, que fugisse da armadilha de copiar o modelo
hollywoodiano e fosse socialmente engajado. O interessante neste documentário é
que por mais que seja um documentário com uma estrutura formal, onde temos um
narrador lançando idéias e as imagens sendo utilizadas como um suporte para as
falas, Jabor em alguns momentos do filme tenta causar no espectador um
estranhamento. Há cenas que são construídas para causar um estranhamento no
telespectador e todas elas são construídos com fatos corriqueiros, cotidianos.
Uma dessas cenas é uma filmagem do programa do Chacrinha, onde há dançarinos de
frevos, cantores da Jovem Guarda, desfile de fantasias de carnaval e o público
aplaude constantemente esse espetáculo inusitado. Outra cena é um show de rock
que acontece dentro de uma igreja, com jovens histéricas lotando os bancos da
Igreja, enquanto o padre pede para que os jovens se acalmem. Uma cena em uma boate
onde uma stripper faz um show com uma cobra em volta do pescoço. Peregrinações religiosas confusas, onde uma
moça opera verdadeiros milagres. Tudo isso é mostrado de uma maneira negativa e
como uma diversão fugaz da classe média. Dessa forma Jabor faz da tela de
cinema uma verdadeira sala de espelhos para o telespectador, com reflexos que
não estamos acostumados a ver de nós mesmos. Como o diz o narrador logo no início
do filme “refletidas numa tela, as coisas
que parecem comuns e eternas revelam-se estranhas e imperfeitas”. Causar
reflexão e estranheza, esse era o objetivo do cineasta ao realizar esse filme. Fazer
com que a casse média emergente pudesse se conhecer e de se compreender melhor
através do cinema. Em uma entrevista publicada no Jornal do Brasil em 1967,
Jabor afirmou que “que se pudesse apontar
um pensamento que me tenha levado a fazer este filme seria o de Brecht: mostrar
através da arte a estranheza do que é familiar”.
Jabor quis demonstrar
em seu documentário que a classe média brasileira, a classe que pretensamente
representam os verdadeiros anseios da sociedade em geral (já que ela que forma A
OPINIÃO PÚBLICA) nada mais é que uma classe social alienada por excelência. Essa
mudança de foco, retratar a classe média em vez das camadas mais pobres da
sociedade, representou uma novidade interessantíssima para o debate político na
época. A grande questão que se discutia até então era de que uma arte engajada
deveria ter como um de seus papéis o de conscientizar o povo, porém, a palavra “povo”
era um verdadeiro sinônimo para as camadas mais pobres da população. Apresentar
a classe média como uma classe que deveria ser conscientizada representou uma
ruptura nesse tipo de discussão. Também representou uma crítica interessante às
pessoas que faziam cinema, principalmente os próprios cinemanovistas, pois quem
produzia cinema eram pessoas da classe média, que faziam seus filmes para falar
da alienação das classes populares, só que quem consumia esses filmes era a
própria classe média. Então produzir filmes, para falar da alienação das
camadas populares, com a esperança de que ao ver seus problemas refletidos numa
tela, elas pudessem realizar alguma mudança na sua condição social era um
projeto despregado da realidade, pois as camadas populares não entravam no
cinema e quando entravam não consumiam esse tipo de filme. Ao tratar da
alienação da classe média, podemos dizer que o Jabor tratou um pouco da
alienação do intelectual da classe média que não conseguia se comunicar com
quem ele queria “salvar” e nem consegui perceber a alienação de sua própria
classe.
Da esq. para a dir.: Bruno Barreto, Cacá Diegues, Arnaldo Jabor e Glauber Rocha