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terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

"A Opinião Pública"



Muitos não sabem, mas antes de se tornar comentarista político do “Jornal da Globo”, Arnaldo Jabor construiu uma carreira como cineasta. Um dos fundadores do Cinema Novo, lançou filmes que entraram para a história do cinema brasileiro, como “Toda nudez será castigada” (1973), “Eu sei que vou te amar” (1986) e o mais importante deles, a sua estreia em longas-metragens, o documentário “A opinião pública” lançado 1967. O objetivo deste documentário era lançar um olhar sobre a classe média brasileira. A escolha do “objeto” a ser analisado representou uma novidade interessantíssima na produção cinematográfica brasileira da época, pois os grandes filmes nacionais lançados até então sempre retratavam minorias sociais, como moradores de morros (“Rio, Zona Norte” de 1955 e “Cinco Vezes Favela” de 1965), retirantes (“A Grande Cidade” de 1966) ou o sofrimento do nordestino (“Deus e o Diabo na Terra do Sol” de 1964, “Vidas Secas” de 1963, “O Fuzis” de 1964). A idéia central do documentário era fazer com que a classe média, principal público consumidor dos cinemas, visse a si mesmo na própria tela e pudesse lançar um olhar crítico para si mesmo. Para realizar seu objetivo, Jabor filmou por meses a vida de moradores do bairro de Copacabana, na cidade do Rio de Janeiro.

Logo no início do filme, enquanto a tela está toda preta, escutamos uma voz em off proferir: “O filme a que vão assistir foi rodado na cidade do Rio de Janeiro. Tudo que verão na tela é absolutamente verdadeiro. A câmera captou os fatos no momento em que aconteciam. Não há atores nesse filme. Veremos aqui as pessoas reais, em suas vidas reais. Nossos amigos, vizinhos, contemporâneos, nós os habitantes comuns de uma cidade da América latina. Nós, os homens da classe média. A classe que os altos poderes do país costumam chamar de a opinião pública”. Essa narração em off vai nos revelar dois  aspectos do filme. O primeiro que eu gostaria de destacar é o fato de o diretor revelar logo de cara que o filme se comunica diretamente com a classe média. Não apenas se comunicando, mas criando uma empatia com o espectador/objeto de análise. Reparem que nessa fala o narrado sempre se refere “a nós”, se colocando como mais um representante da classe média, desse modo, o diretor pretende conferir a sua análise um status de neutralidade ideológica, pois, ao se colocar dentro desta classe, toda e qualquer crítica que será levantada no filme recairá também sobre os próprios realizadores do filme, representantes da classe média que são. Dito isso, o segundo aspecto que essa primeira fala vai nos revelar é o modo como a estrutura do filme será montada e desenvolvida: a voz em off funciona como a voz da verdade (lembrem-se da fala inicial do narrador: tudo que verão na tela é absolutamente verdadeiro), todas as intervenções do narrador servirão para explicar, informar e esclarecer o espectador sobre quem é e o que pensam as pessoas da classe média; as imagens, nesse caso, servem apenas para legitimar as intervenções do narrador. Nesse documentário a imagem fica em segundo plano, o importante é que o espectador compreenda as idéias lançadas pela voz do narrador, detentor da verdade. Desse modo o filme cria em torno de si um caráter de análise sociológica. Não é de se espantar, já que a idéia do filme surgiu do livro de um sociólogo, o norte-americano C. Wright Mills, chamado “White Collar: The American Middle Classes” (1951).

Depois da advertência do narrador o filme de fato inicia. Vemos o letreiro do filme, o nome da equipe do filme, algumas imagens em plano aberto da orla, depois imagens de edifícios residenciais enquanto uma música é tocada ao fundo. A câmera adentra um dos edifícios e enquanto somos guiados pelo diretor através dos corredores do edifício o “narrador/detentor da verdade” diz: “Tudo que verão aqui é típico. Fugimos do exótico e do excepcional e procuramos as situações, os rostos, as vozes, os gestos habituais. Isto por que, refletidas numa tela, as coisas que parecem comuns e eternas se revelam estranhas e imperfeitas. Começamos com uma turma de jovens de Copacabana. Perguntamos sobre o futuro”. Então somos apresentados ao primeiro grupo da classe média analisada pelo filme: a juventude. A cena na tela um grupo de cinco rapazes tentando fazer com que um deles, em especial, responda a esta “simples” pergunta lançada pelo diretor/narrador. A cena prossegue por mais de dois minutos e meio e nenhum dos rapazes consegue dar uma resposta sobre o que pensam do futuro.  E assim o documentário segue durante várias sequencias, mostrando cenas cotidianas de jovens, na escola, na praia, no bar, onde sempre a juventude é apresentada como um grupo de pessoas superficiais, risonhas etc.

Seguindo com o filme, logo depois de apresentar essas cenas, o narrador profere sua conclusão acerca da juventude de classe média: “Geralmente se liga juventude moderna com revolta. As manchetes falam em tóxicos, delinquência. Não vimos isso no jovem comum da classe média. Na maioria, ele ignora que a sociedade é um teatro de grandes conflitos e marcha através de um presente risonho para um futuro conformado. Para eles, o futuro é apenas um lugar em que vivem os adultos”. Nesse ponto já percebemos a construção da imagem que o documentário pretende criar da juventude da classe média.


 Jovens falam sobre o futuro


Desta vez outro grupo de jovens aparece em um bar falando sobre o “futuro”. Todos eles falam sem nenhuma preocupação sobre o futuro, apresentando argumentos como “Você leva dessa vida o que aproveitou, não é dinheiro, nem nada, por que depois que a gente vai para o buraco nada disso interessa” ou “Eu não me sinto responsável em nada. O destino é que sabe. Dia vem, dia vai, o que vier está bem, o que for será”, depoimentos que serviriam para denunciar a total despreocupação da juventude da classe média. O próprio autor destaca um culpado nesta alienação da juventude. Para o autor o grande culpado seria “a moderna indústria”, pois “A indústria vende aos jovens todos os sonhos. Os principais produtos são o sucesso e a felicidade. O universo desta moderna indústria é conformista e totalmente isento de angústia. Qualquer traço de revolta é logo vulgarizado em moda. O que surgiu como protesto social vira estilo de roupa ou corte de cabelo, os novos uniformes da obediência”. A juventude é tratada por este filme como alienada e incapaz de produzir qualquer revolução ou mudança social, a juventude, assim, é somente um fruto da indústria cultural.

Outro elemento da classe média analisado pelo documentário são as mulheres. Uma das primeiras cenas em que vemos apenas mulheres é uma sequencia onde várias garotas estão em um quarto discutindo seus relacionamentos amorosos e discutindo sobre o amor. A cena corta para um diálogo onde duas jovens estão discutindo com uma mulher mais velha sobre o que é amor. Nesta conversa a mulher mais “experiente”, como ela própria faz questão de salientar, diz que o importante sobre o casamento é: “não pense só no amor, pense num homem que lhe possa embalar o sono tranquilamente”. O diretor quer demonstrar que o importante para a classe média seria a tão sonhada estabilidade econômica, sentimento como amor seriam coisas menores, pois o importante era a estabilidade financeira. 


  Mulher e jovem discutem sobre o amor


Outra cena importante que mostra o papel da mulher da classe média na sociedade é uma entrevista com uma dona de casa. Durante a entrevista ela descreve o seu dia-a-dia. “Eu acho que a mulher nasceu para isso, para ser de um homem só e cuidar da sua casa. Mas também passear um pouco não é? Por que ela não é escrava. (...) Acho minha vida chata demais. É cuidar dos filhos, cuidar da casa, uma praia de vez em quando, de manhã, com os filhos, com os quatro, lavar, passar pro meu marido, comida, fazer comida, levantar de madrugada quando ele chega das farras, botar comida para ele. Quer dizer, isso não é vida, de maneira nenhuma” é dessa maneira que a dona de casa descreve a sua rotina, uma rotina de trabalho e de subordinação. É dessa maneira que o cineasta percebe a mulher da classe média, uma mulher presa ainda ao costume de opressão e de subserviência ao marido.

Outro momento importante do filme é numa fila de alistamento militar. O locutor apresenta a cena da seguinte maneira: “O homem da classe média sempre é propriedade de alguém. Hoje se alistam no exército, breve, serão os homens dos escritórios, dos departamentos, dos arquivos. Terão crenças, chefes e dignidade. Serão chamados nos jornais de a opinião pública e ficarão orgulhosos de cumprir as funções da nacionalidade”. Depois da fala em off os jovens presentes no alistamento começam a responder o por que de estarem ali. Não há em nenhum dos depoimentos alguma referencia sobre o golpe de militar, parece que muitos até nem dão conta do fato ocorrido (vale lembrar que o filme foi feito em 1967, ou seja, depois do golpe de 1964). O único argumento apresentado é que o alistamento “seria mais um passo na formação do homem”. Logo em seguida aparecem cenas dentro de uma repartição pública. Neste momento do filme há uma sequencia interessante. Há o depoimento de um funcionário que diz não se importar com o que produz por que não é da alçada dele saber, quem deve saber a importância do que ele produz são os seus “superiores”, seus chefes. Depois de tal cena, é a vez do chefe fazer seu discurso e ressaltar o que o seu subordinado tinha acabado de afirmar. Impossível não se lembrar das teorias da mais-valia e da alienação do trabalho de Karl Marx.

O filme segue dando vários exemplos da alienação da classe média brasileira, seu total desconhecimento do momento pelo qual o país estava passando. Uma dessas cenas é uma que ocorre no meio da rua onde as pessoas foram convidadas para darem sua opinião sobre qual seria a solução para o problema do país. As respostas que vemos surgir na tela são várias, desde a defesa da Amazônia, passando pelos problemas da fome, inflação até o desenvolvimento da agricultura etc. Para logo em seguida o narrador desferir seu último olhar acerca dessa classe: “Disse o sociólogo norte-americano Wright Mills: a história da classe média é uma história sem fatos. Seus interesses comuns nunca levam a unidade. Seu futuro nunca é escolhido por ela”. 

Como falei no inicio desse texto, Jabor foi um dos principais representantes do Cinema Novo, movimento cinematográfico que tinha como principal objetivo produzir um novo cinema brasileiro, que fugisse da armadilha de copiar o modelo hollywoodiano e fosse socialmente engajado. O interessante neste documentário é que por mais que seja um documentário com uma estrutura formal, onde temos um narrador lançando idéias e as imagens sendo utilizadas como um suporte para as falas, Jabor em alguns momentos do filme tenta causar no espectador um estranhamento. Há cenas que são construídas para causar um estranhamento no telespectador e todas elas são construídos com fatos corriqueiros, cotidianos. Uma dessas cenas é uma filmagem do programa do Chacrinha, onde há dançarinos de frevos, cantores da Jovem Guarda, desfile de fantasias de carnaval e o público aplaude constantemente esse espetáculo inusitado. Outra cena é um show de rock que acontece dentro de uma igreja, com jovens histéricas lotando os bancos da Igreja, enquanto o padre pede para que os jovens se acalmem. Uma cena em uma boate onde uma stripper faz um show com uma cobra em volta do pescoço.  Peregrinações religiosas confusas, onde uma moça opera verdadeiros milagres. Tudo isso é mostrado de uma maneira negativa e como uma diversão fugaz da classe média. Dessa forma Jabor faz da tela de cinema uma verdadeira sala de espelhos para o telespectador, com reflexos que não estamos acostumados a ver de nós mesmos. Como o diz o narrador logo no início do filme “refletidas numa tela, as coisas que parecem comuns e eternas revelam-se estranhas e imperfeitas”. Causar reflexão e estranheza, esse era o objetivo do cineasta ao realizar esse filme. Fazer com que a casse média emergente pudesse se conhecer e de se compreender melhor através do cinema. Em uma entrevista publicada no Jornal do Brasil em 1967, Jabor afirmou que “que se pudesse apontar um pensamento que me tenha levado a fazer este filme seria o de Brecht: mostrar através da arte a estranheza do que é familiar”.

Jabor quis demonstrar em seu documentário que a classe média brasileira, a classe que pretensamente representam os verdadeiros anseios da sociedade em geral (já que ela que forma A OPINIÃO PÚBLICA) nada mais é que uma classe social alienada por excelência. Essa mudança de foco, retratar a classe média em vez das camadas mais pobres da sociedade, representou uma novidade interessantíssima para o debate político na época. A grande questão que se discutia até então era de que uma arte engajada deveria ter como um de seus papéis o de conscientizar o povo, porém, a palavra “povo” era um verdadeiro sinônimo para as camadas mais pobres da população. Apresentar a classe média como uma classe que deveria ser conscientizada representou uma ruptura nesse tipo de discussão. Também representou uma crítica interessante às pessoas que faziam cinema, principalmente os próprios cinemanovistas, pois quem produzia cinema eram pessoas da classe média, que faziam seus filmes para falar da alienação das classes populares, só que quem consumia esses filmes era a própria classe média. Então produzir filmes, para falar da alienação das camadas populares, com a esperança de que ao ver seus problemas refletidos numa tela, elas pudessem realizar alguma mudança na sua condição social era um projeto despregado da realidade, pois as camadas populares não entravam no cinema e quando entravam não consumiam esse tipo de filme. Ao tratar da alienação da classe média, podemos dizer que o Jabor tratou um pouco da alienação do intelectual da classe média que não conseguia se comunicar com quem ele queria “salvar” e nem consegui perceber a alienação de sua própria classe.
Da esq. para a dir.: Bruno Barreto, Cacá Diegues, Arnaldo Jabor e Glauber Rocha