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quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

Sniper Americano (2014)



Estudo sagaz, crítico e inteligente de Eastwood acerca dos percalços decisivos diante de situações extremas diante de todo um molde moral embasado pelo conservadorismo social e político americano. A sutileza das tragédias de Clint continua impressionando.

Filme dirigido por Clint Eastwood. 
Nota 9

Por Ted Rafael Araujo Nogueira

Clint Eastwood decide enveredar-se em um dos âmbitos de maior defesa do conservadorismo americano: o belicismo secular americano. Isto se focando na história de Chris Kyle, um dos maiores franco-atiradores de todos os tempos em uma espécie de semi-biografia, mais focada em seus anos de combate no Iraque. 

Eastwood como conhecido conservador americano que é, busca criar toda uma atmosfera que vise montar um mosaico das articulações que viriam a motivar Chris ao combate por seu país. E o faz de forma genérica, desde a criação texana nas bases dos westerns ou na educação conservadora americana baseada em ideais patrióticos claros, pungentes e maniqueístas pós-derrocada vietnamita da era Nixon. Além do fato do crescimento de Kyle formar-se mediante este universo, se entrelaça ao seu modus operandi nacionalista a vontade de lutar contra o "mal do oriente". Diante de todo este mosaico genérico já visto em várias outras obras entra a sutileza da derrocada do ser humano na visão de Clint. Diante de todos os esforços e serviços prestados Kyle sempre é realçado como um batalhador nacionalista com as nuances conservadoras em suas costas e que não mede sacrifícios para defender seu país mesmo que isto custe sua vida. O que não esperava é que custaria parte de sua sanidade e que mesmo diante de tanto defender o estado passara por anos sendo uma lenda perdida em meio ao caos dos tiroteios. Sempre como um anestesiado diante do muito que o cerca. 

Clint, com o uso do ótimo roteiro de Jason Hall, visa mostrar esta figura como exemplo de onde o conservadorismo (seja ele qual for) pode compor uma existência e onde seus excessos podem ser destrutivos e/ou profícuos, não paradoxalmente. Lembra a composição final de situação de William Munny no seu “Os Imperdoáveis” (1992) (salve as proporções bem menos enaltecedoras deste último). Kyle é um cara engajado, criado em família católica praticante, temente a Deus e defensor voraz do instinto de proteção familiar. São esses elementos já tão vistos que Eastwood mostra seu talento em narcotizar tudo na figura de seu atirador. Sim, todos os elementos clássicos do conservadorismo estão lá, como que de propósito, esperando pra serem usados ao invés de somente comporem um contexto de personagem. Compõem sim, mas vai tudo, além disso. São as leves nuances dadas a Kyle que transformam tudo em um estudo crítico dos excessos e de que forma uma vida assim pode ser visualizada e por alguns enaltecida. Nas mãos de outro diretor tudo poderia ser uma ode domesticada ao período Era Bush como forma a defender a guerra do Iraque e à morte dos facínoras que os fossem contra aos intentos de defensores desta era. Filmes imbecis como “Invasão à Casa Branca” (Antoine Fuqua – 2013) se fazem assim, onde os novos terroristas irracionais e loucos seriam os norte-coreanos neste último. Mas em Sniper Americano é imposto o ritmo necessário pra que se entenda Kyle e que não se busque defendê-lo somente, mas sim contemplar as possibilidades do quão pode se perder quando se assumem determinados riscos. Nunca em uma doutrinação pró Bush burra, mas um entendimento de como uma figura clássica americana em seu ensejo inicial viria a deixar perder-se nos, tão defendidos, por muitos, conflitos bélicos. 

Que fique claro, Clint defende seu personagem sim. Defende alguns elementos desse belicismo americano por vezes creditado como necessário, mas não deixa de expor as várias de suas chagas iminentes. O mais interessante é exatamente ver um cara como Clint projetar-se a compor tal obra. Um filme tão distante e perdido na figura de Kyle que visa uma proximidade com seu espectador exatamente em suas matanças. Estudos de personagens em combate já haviam sido concatenados antes recentemente como em “Soldado Anônimo” (Sam Mendes – 2005) por exemplo, em diferença de status e estigmas a este último há o herói lendário que Kyle vem a representar pra muitos companheiros, como um ser humano perdido e desolado, sempre triste. Como se várias camadas das tonalidades do seu caráter fossem mantidas amortizadas, anestesiadas. Funcionais quando lhe apetecessem. Seriam estes percalços de guerra propriamente dita que o teriam deixado assim? Ou a massiva propaganda de sempre (sutilmente delineada aqui) propalada pelo Tio Sam o teriam deixado tão distante?

Chris Kyle afirma não se arrepender de ter matado (oficialmente) 160 pessoas em suas viagem ao oriente em determinada passagem, e diz querer ter protegido mais seus companheiros em uma já clara alusão a todos os meandros da criação conservadora já citados aqui. Mas seu semblante mostra, não o arrependimento, mas mostra o envelhecer do peso dos anos de uma responsabilidade absurda de se tirar uma vida e de como isto pode afetar o enrijecer de toda uma existência. Algo que Clint sempre gosta de manifestar e alertar, como já fora visto em “Os Imperdoáveis”, “Sobre Meninos e Lobos” (2003) e “Menina de Ouro” (2004). O grande lance deste filme é a sutileza das contradições apontadas por Clint, o assumir de responsabilidades e o que elas te acarretam. Não visa discutir a questão ética da guerra em si pelas questões óbvias, mas sim na concatenação de seu personagem principal sempre meio perdido como ser humano em meio a tanto heroísmo que lhes é dado. 

Bradley Cooper tinha uma missão de grande dificuldade neste papel diante da embalagem preparada por seu diretor, mas assumiu o processo inteiro de forma veemente e cirúrgica em todas as texturas dadas a Kyle deixando-o como uma figura multifacetada de expressões sutis sempre em busca do próximo alvo, ou simplesmente em busca do ter o que fazer pra responder sua estadia na guerra defendendo a pátria, a família, os companheiros. Buscando uma justificativa para este mosaico de vida de forma a responder por sua incapacidade de se relacionar de outra forma. Interessante a alegria inicial do pungente cidadão americano de fala dura e segura para se engendrar nas dúvidas de seu silenciar futuro. O resto do elenco compõe bons e razoáveis personagens (alguns bastante matizados) de forma a completar o ambiente para a existência membranosa de Kyle. 

Eastwood peca somente em alguns percalços exagerados em alguns dramas como na figura da esposa de Kyle que escuta alguns tiroteios enquanto falava com Kyle em momentos dramáticos e desnecessários por demais. Pro bem tudo muito rápido e de forma alguma impede a pungência da obra. Aqui os iraquianos são mostrados simplesmente como o outro em combate. A visão de Clint é ríspida, mas não rasteira, oportunista e preconceituosa, como em “Argo” (Ben Affleck – 2012) com os iranianos. Aqui é a simples visão do outro ao longe, assim como a visão inicial dos japoneses aos americanos em “Cartas de Iwo Jima” (2006) do próprio diretor. Clint não toma tanto partido na crítica aos iraquianos que lutavam, a não ser em uma cena de um líder islâmico com uma furadeira à mão contra uma criança. Esta cena específica mais visa mostrar o quão Kyle se sente um inútil em determinadas situações e como busca algo que sempre o faça voltar. As dúvidas e as certezas do que se deve defender e de quais são os seus limites mediante uma luta moralista.

Que não passe despercebido, logicamente, a parte técnica. Porra Clint ainda chuta muitas bundas quando quer. A sugestão das imagens nas conjunturas solitárias de Kyle é soberba, onde todos os tons de cinza e o amarelado das areias diárias da desgraça na fotografia (excelente apoio de Tom Stern) funcionam como o infindável conflito interno de Kyle vindo a mostrar toda a experiência e talento inquestionável de Eastwood na defesa da construção de tragédias gregas de seus personagens. Um mestre. A montagem eficiente e o som estupendo completam o espetáculo visual que culmina na excelente montagem da cena final no Iraque com direito a criação de uma atmosfera insuportável de tensão na despedida bélica stricto sensu de Kyle no Iraque.

Se procurares uma crítica ao modelo antibelicista de parte da esquerda americana, não achará um grande aporte aqui. Se buscar uma defesa a alguns elementos dos elementos aos moldes do conservadorismo clássico americano você a encontrará cercada de suas falhas e conotações intrínsecas aos sofrimentos dos caminhos seguidos das figuras que vivem sob a égide desta escola. Aqui há um estudo de uma figura acima de tudo, defendendo e culpabilizando seus problemas com o enaltecimento da força das escolhas de proteção/mortandade de gregos e troianos.